O texto a A denúncia da mordomia é um comentário de Ricardo Kotscho a respeito da reportagem Assim vivem os nossos superfuncionários e tanto o comentário, quanto a reportagem foram retirados livro Dez Reportagens que abalaram a ditadura, organizadas por Fernando Molica.
A denúncia da mordomia
Ricardo Kotscho
A censura prévia tinha acabado de sair do Estadão nos primeiros meses de 1976. Fernando Pedreira, diretor de redação, me chamou e mostrou uma reportagem da revista New Yorker sobre a boa vida e os privilégios dos altos funcionários na então União Soviética. “Dá uma olhada nisso. Você vai descobrir que aqui é a mesma coisa; comentou, do alto dos seus cabelos brancos e largos conhecimentos sobre as entranhas do poder militar. Deu-me algumas fontes, amigos seus de Brasília e do Rio de Janeiro, e desejou-me boa sorte, sem estipular um prazo para entregar a reportagem.
Minha primeira providência foi pedir ajuda de colegas na tradução da matéria da New Yorker, já que meu inglês nunca deu nem para o gasto. E lá fui eu, sem muita idéia do que poderia render o assunto, atrás dos amigos do Pedreira em Brasília. Naquela época, governo Geisel, as pessoas ainda tinham muito medo de falar com desconhecidos, ainda mais jornalistas. As primeiras conversas não renderam muito, mas me apresentaram a uma palavra-chave – mordomia, uma rubrica do Diário Oficial, que especificava a relação de comes, bebes, cartões de crédito e benfeitorias em geral destinadas aos ministros e altos funcionários.
Com base nestas dicas, preparei um roteiro da reportagem, que deixei primeiro na sucursal de Brasília do jornal e depois foi enviada a toda a rede de correspondentes do jornal. Era talo sentimento de impunidade, que a minha melhor fonte acabou sendo mesmo o Diário Oficial. Quem me ajudou muito nessa primeira fase do trabalho foram Raul Martins Bastos, chefe da melhor rede de sucursais e correspondentes já criada por um jornal brasileiro, e Hebe Guimarães, repórter em Brasília.
Durante dois meses, repórteres desta rede me mandaram relatórios e, a partir deles, fiz várias viagens pelo país, checando dados, levantando fatos novos. Ao final do trabalho de apuração, juntei dezenas de pastas e fui escrever a matéria em casa.
No final de junho, quando terminei de escrever, percebi que tinha um material explosivo nas mãos, que renderia uma série de reportagens e, certamente, muita confusão. Fui comer uma pizza com minha mulher para comemorar o final do trabalho, mas quando mostrei o resultado ao Fernando Pedreira, lembro-me bem, ele ficou mais assustado do que feliz. Pediu um tempo para ler tudo com calma, lembrou que o Congresso Nacional iria entrar em recesso, achou melhor só publicar a série em agosto e me recomendou tirar férias.
No último dia das férias, um domingo, voltando de Caraguatatuba para São Paulo, também levei um susto quando li a manchete: Assim vivem os nossos superfuncionários. Estava tudo lá, sem cortes. A segunda-feira foi um inferno. Pressões do governo vinham de todas as partes e a todo momento eu era chamado pela direção para confirmar alguma informação contida na matéria. Júlio Mesquita Neto, o diretor responsável, foi chamado a Brasília, houve um corte de luz na redação à noite e recebi recados para me cuidar vindos de colegas que cobriam a área militar.
As edições do jornal esgotavam rapidamente nas bancas de todo o país e pessoas tiravam cópias (não me lembro se já existia xerox, mas sei que tiravam de algum jeito) para quem não conseguia comprar o Estadão. Não houve desmentidos, ninguém foi processado, mas por muitos dias não se falou de outra coisa no Congresso Nacional e em tudo que era canto do país. Também não me lembro se alguém foi punido no governo, mas temo que a denúncia das mordomias tenha provocado um efeito contrário ao que eu imaginava: em vez de acabar com elas, fiquei sabendo depois que elas se alastraram por outros escalões e latitudes das diferentes esferas de poder.
Ganhamos o Prêmio Esso de equipe daquele ano e fiz questão de convidar colegas que participaram do trabalho para recebê-Io e dividi-lo junto comigo, em São Paulo. Não houve festa nem cerimônia, como habitualmente acontece. O prêmio foi entregue na redação do jornal mesmo, junto à mesa do editor-chefe Clóvis Rossi, meu mestre e grande incentivador dos jovens repórteres que éramos todos naquela época.
Mordomia passou a fazer parte do vocabulário do dia-a-dia do brasileiro. A ditadura acabou, o jornal mudou, eu fui ser correspondente do JB na Alemanha, e nunca mais se deixou de denunciar o que havia de privilégio ou abuso na vida dos donos do poder. Bons tempos esses, apesar de tudo.
Assim vivem os nossos superfuncionários
O Estado de São Paulo, 1/8/1976
Parecia que de um dia para o outro os superfuncionários governamentais haviam decidido cometer todos os tipos de abusos. Foi no começo do governo Geisel: as seções políticas dos jornais, que vinham de um lustro que quase as levava à extinção, de repente enchiam suas colunas com denúncias sobre as mais variadas práticas de utilização de recursos públicos em benefício próprio, envolvendo entidades e personagens de praticamente todos os escalões do governo.
Na verdade, esta súbita tentativa de desmascaramento do que realmente se passava nos herméticos bastidores governamentais apenas coincidia com um parcial levantamento da censura à imprensa. Os fatos não eram propriamente novos – a novidade consistia na possibilidade de que eles se tornassem públicos.
Ao mesmo tempo, as mudanças político-partidárias provocadas na vida nacional com as eleições de 74, em conseqüência de um significativo avanço da oposição, que tornou o Congresso Nacional mais atuante, fizeram com que a população tomasse conhecimento de práticas pouco dignificantes.
Os privilégios dos superfuncionários governamentais, da administração direta e indireta, haviam chegado a tal ponto que maio último o presidente da República resolveu tornar públicas suas preocupações, com a divulgação de uma circular encaminhada aos ministros, determinando que fossem tomadas providências enérgicas contra os abusos.
A íntegra da circular, divulgada a 23 de maio, dizia:
1. A ocupação de imóveis residenciais da União, em Brasília, está regulada pelo decreto n° 75.321, de 23 de janeiro de 1975, cujas normas se aplicam a todos os órgãos ou entidades da administração direta e indireta, bem como às fundações sob supervisão artificial.
2. Define o citado diploma, em seu artigo 3°, entre outros, os tipos de residências destinadas a ministros de Estado (tipo ‘:4″) e titulares de cargos de direção superior ou de grau de representação equivalente (tipo “B”).
3. O artigo 34 do mesmo decreto determina que as despesas de manutenção e conservação das residências ministeriais ficam a cargo do órgão a que pertençam, estabelecendo o artigo seguinte que os ocupantes das residências do tipo “B” estão isentos de encargos e despesas de utilização até o limite ali fixado.
4. Chega ao conhecimento do senhor presidente da República, entretanto, que tais prescrições, a despeito de sua clareza, não vêm sendo observadas, notadamente na área da administração indireta e fundações.
5. A vista do exposto, o senhor presidente da República recomenda o assunto à especial atenção dos senhores ministros de Estado e determina sejam efetivamente coibidas as chamadas despesas de mordomia nas residências oficiais não classificadas no tipo ‘:4’: promovendo-se a responsabilidade de quem as realize.”
Não há notícias posteriores de ”promoções de responsabilidade”: Mas, hoje, sabe-se que a circular do presidente da República só foi divulgada porque ele já havia encaminhado um aviso reservado aos ministros, sobre o mesmo assunto, no ano passado. Como nenhum resultado prático foi observado, ele resolveu tornar o documento ostensivo.
Passaram-se dois meses e o assunto voltava a ocupar a atenção do presidente da República. Em julho, o general Geisel assinava decreto que regula a ocupação de imóveis residenciais da administração federal no Distrito Federal, classificando as moradias em seis tipos com características próprias e indicando, pelo critério de hierarquia funcional, as autoridades e servidores a que se destinam.
Pelo decreto, que se tornou conhecido como a “Lei das Mordomias’; só os ministros de Estado terão direito à mordomia, que compreende o assalariamento de serviçais, compras de alimentos e serviços de lavanderia, realizados, exclusivamente, nas residências oficiais.
De qualquer forma, os privilégios citados na circular presidencial e posteriormente regulamentados pelo decreto – residências oficiais e mordomias – são hoje apenas uma pequena parcela do aparato colocado à disposição dos superfuncionários governamentais, que inclui aviões executivos, cartões de crédito, contas abertas em supermercados, passagem, diárias e até mesmo uma estranha participação nos lucros de empresas estatais que apresentem déficit em seus balanços.
Durante dois meses, uma equipe de repórteres do “Estado”, que incluiu toda a rede nacional de sucursais e correspondentes, fez o mais completo levantamento possível da vida dos superfuncionários governamentais. Na série de reportagens que hoje inicia, o “Estado” mostra como vivem, quem são, de onde vieram, o que pensam e a que tipo de controle estão submetidos os nossos superfuncionários, procurando-se a origem do aparato de privilégios hoje colocado à sua disposição.
E chega-se a uma grave constatação: inexiste uma legislação específica que permita ao Congresso Nacional e aos tribunais de contas exercerem, em sua plenitude, a tarefa de fiscalizar as atividades dos superfuncionários governamentais, fato que se torna mais grave à medida que se prolonga o regime de excepcionalidade em que vive o país. Os reiterados apelos e providências do presidente da República comprovam, por sua vez, que ao próprio governo torna-se difícil exercer esse controle e impedir os abusos.
O muro de silêncio e segredos erguido em torno das atividades desses funcionários governamentais, que tudo transformam em questões de segurança nacional, se por um lado dificulta sobremaneira a atividade fiscalizadora da imprensa, assim como a do Congresso, por outro gera um clima favorável a boatos e especulações que se fazem em todo o país – impedindo muitas vezes ao próprio governo distinguir a realidade da fantasia.
O objetivo principal do “Estado” ao publicar esta série de reportagens, com fatos públicos e notórios, alguns já anteriormente divulgados em notícias esparsas, é o de montar um quadro da situação vigente no país em junho de 76, mostrar suas causas e alertar para o fato de que sem uma legislação que permita um maior controle das atividades desses superfuncionários e com um Poder Legislativo emasculado da sua tarefa fiscalizadora corre-se o risco de ter um poder autônomo e paralelo, de vida independente dentro do aparelho do Estado.
Se alguma das informações coletadas por esta série de reportagens pecarem por imprecisão, o fato deve-se exatamente ao sigilo que cerca as atividades dos superfuncionários e a impossibilidade de acesso a documentos oficiais. Só com o debate amplo e franco é que se tornará possível encontrar a verdade e corrigir as distorções – e é isso que o “Estado” pretende, colocando desde já suas páginas à disposição daqueles que quiserem fazer eventuais esclarecimentos.
Em tudo, o clima de uma grande festa
o trinco da geladeira quebrou e a mulher não teve dúvidas, chamou um mordomo, pago pelo governo, e deu-lhe ordens para requisitar imediatamente uma geladeira nova, paga pelo governo.
Afinal, para quem é mulher de um diretor do Banco do Brasil, pago pelo governo, é mais fácil comprar uma geladeira nova do que mandar consertar a velha – velha de dois meses de uso. Elas, as mulheres dos nossos superfuncionários estatais, não costumam hesitar. Quando surgem esses pequenos problemas domésticos, mandam logo trocar tudo. De tapetes e cortinas, a roupa de cama, mesa, banho, guarnições, faqueiros, aparelhos de jantar, quadros e, se for o caso, até máquinas de fazer iogurte – a última novidade, introduzida recentemente pela mordomia de um diretor da Telebrasilia, que tem telefone no carro.
Surgiu, porém, um imprevisto: o depósito do Banco do Brasil, no Setor das Indústrias, em Brasília, já está latada de equipamentos domésticos de toda espécie, considerados indesejáveis. Por falta de quem os queira, estragam com o tempo.
Pior é quando a casa inteira é rejeitada, como aconteceu com a casa de um ministro. A casa só não foi abandonada, porque se encontrou uma solução pacífica: um subordinado do ministro aceitou ficar com ela em troca da sua, enquanto o ministro cuidava da construção de uma nova.
A mesma sorte já não teve a residência oficial do presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. A mulher de Lourenço Tavares Vieira da Silva, superintendente do INCRA, não gostou do apartamento da quadra SQS 316 e foi alugado um outro, pago pelo governo, na SQS 111. O da SQS 316 está fechado até hoje.
Elas, as mulheres dos nossos superfuncionários estatais, são muito exigentes e não gostam de perder tempo com detalhes. Há uma extensa programação de jantares, coquetéis e recepções a ser cumprida em Brasília. É muito raro o dia em que não há uma festa na Capital Federal. Agora, o joguinho de baralho de todas as tardes, sempre a dinheiro, esse é sagrado. Nunca falha. As preferências das mulheres do primeiro escalão variam entre o tradicional buraco, o pif-paf e o biribinha amigo, acompanhados, é claro, do chá das cinco.
Para as noites em Brasília, só há uma opção melhor que as festas: as sessões privadas de cinema, um hobby que já faz parte das melhores tradições da cidade. As sessões mais concorridas – e disputadas – são as promovidas por Reis VeIloso, Armando Falcão, Ney Braga, Itamarati, Presidência da República, EMFA, BNDE e outras siglas menos votadas. Com uma atração que nenhum outro cinema pode apresentar: os fIlmes não são censurados.
Sem precisar sair do país, os superfuncionários da Nova Capital já assistiram ao “Último tango em Paris”, “Decameron”, “Laranja mecânica”, “Estado de sítio”, “Z”, “EmannueIle”, entre os mais conhecidos.
Não há, é verdade, muitas outras opções para os que procuram lazeres culturais: o único teatro da cidade está fechado para reformas e os cinemas no circuito normal passam filmes desinteressantes, que a maioria já assistiu em suas cidades de origem nos fins de semana.
Por isso, talvez, sejam tão cultivados os “open-house” em Brasília.
Mas há outros bons motivos. Por exemplo: ninguém gasta nada e todos se divertem. Das suntuosas casas no Lago Paranoá, todas com piscina, aos comes-e-bebes das melhores marcas estrangeiras, passando por garçons e criados, até os carros e motoristas que levam os convivas além das flores ofertadas às anfitriãs, tudo fica por conta das verbas de mordomia ou representação – ou seja, tudo é pago pelo governo.
Se a festa for na casa do ministro das Minas e Energia, Shigeaki Ueki, os convidados poderão dar um mergulho na piscina, até mesmo nas noites mais frias do ano: ela é térmica. Mas, se por algum motivo, preferirem bebidas nacionais às estrangeiras, terão de ir à casa do ministro da Saúde, Almeida Machado – um dos poucos locais onde ainda se serve uísque nacional, um produto raro em Brasília. Para os que gostam de ser bem servidos, a melhor opção ainda é a casa do ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, que dispõe de uma criadagem fixa de 28 pessoas.
É uma roda-viva. Os convidados de ontem precisam retribuir amanhã. O movimento em cabeleireiros e butiques é maior do que em qualquer outra cidade brasileira. Sem condições de atender à demanda, as floriculturas, por exemplo, recebem pedidos por telefone. Mandam as flores e depois enviam as contas para a residência ou repartição competente. Como todo dia é dia de festa, o movimento é tão intenso que as contas costumam levar mais de uma semana para serem enviadas.
Ao longo das quadras do Lago Sul espalham-se as residências dos superfuncionários, construídas ou alugadas pelo governo, que paga todas as despesas, incluindo o encarregado da limpeza das piscinas.
É praticamente impossível apurar quantos superfuncionários, hoje, usufruem estes privilégios. Entretanto, um funcionário de inspetoria-geral de finanças revela que até o papel higiênico, assim como o uísque, são adquiridos pelo Ministério onde trabalha para a residência de assessores da secretaria-geral- do terceiro escalão para baixo.
Aos poucos, a seleta “Península dos Ministros” começou a ser invadida pelos presidentes de autarquias e fundações, enquanto a corte de assessores se transferia para os luxuosos apartamentos que antes eram reservados apenas ao primeiro escalão.
Questão de gosto
Não satisfeitos, os superfuncionários dedicam-se a fazer reformas completas em apartamentos funcionais, como elevar o piso, mudar a forração, derrubar paredes, fechar outros cômodos de acordo com suas preferências em matéria de decoração, não se preocupando com o gosto daqueles que irão substituí-Ios, nem com os gastos, que não são deles …
Um dos casos mais comentados em Brasília é o do secretário-geral do Ministério da Saúde. Irritado com a decoração que encontrou, mandou trocar tudo. Mas não se limitou a ir a uma loja para comprar móveis novos. Chamou um decorador paulista, mais ao seu estilo, e encomendou móveis sob medida. A reforma acabou custando mais caro que o próprio apartamento.
As residências tanto podem ser construídas com recursos próprios da administração direta ou das empresas estatais, como alugadas. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, por exemplo, construiu cinco residências para seus diretores numa mesma quadra do Lago, além, evidentemente, da casa do presidente.
Há um detalhe curioso: em Brasília, os proprietários de imóveis – apartamentos na Asa Sul ou bangalôs no Lago – preferem alugar suas propriedades aos órgãos públicos. E isso é plenamente justificado, como revelou um episódio recente. O GEIPOT* alugou uma casa no Lago, para um dos seus diretores. Como a casa não tinha piscina, o órgão providenciou sua imediata construção. Quando ela foi devolvida ao proprietário – porque o diretor iria para uma outra, ainda mais elegante -, qual não foi sua surpresa ao recebê-Ia de volta com piscina e outros melhoramentos, bastante valorizada no mercado imobiliário, sem que para isso tivesse despendido um único centavo.
O mercado é inesgotável. Como se pode ver por este anúncio, publicado em maio, no “Correio Braziliense”: “Órgão público necessita para locação imediata – 4 casas na Península Sul até o QI ou QL 6 – 40 apartamentos com 3 ou 4 quartos em quadras urbanizadas. Informações: Ed. Serra Dourada, Grupo 611- Fones: 24-3886 e 235621 – CRECI J/647 B/26351″. O órgão público, no caso, é o Ministério das Minas e Energia, que já tem mais de uma superquadra inteira de apartamentos funcionais. As quatro casas no Lago são para diretores. Como uma já foi alugada por Cr$ 10.000,00, o limite estabelecido para o aluguel das demais é Cr$ 9.000,00, por questões de hierarquia (um funcionário, mesmo graduado, não pode morar melhor que seu superior). O aluguel médio dos apartamentos procurados pelo Ministério é de Cr$ 5.000,00. Ou seja: só com esse anúncio, o Ministério das Minas e Energia gastará mensalmente mais cerca de Cr$ 250.000,00 só em aluguéis.
Para o Ministério das Minas e Energia – “Sabendo usar, não vai faltar”* -, essa despesa talvez não faça muita diferença no orçamento. Mas a moda das residências oficiais e funcionais não se limita hoje à Capital Federal, nem a funcionários transferidos para outros estados.
Em Manaus, foi construído um “Conjunto dos Secretários” na administração passada, quando o governador João Walter de Andrade “importou” a quase totalidade dos seus assessores, tanto do primeiro quanto do segundo escalão. Na atual administração, embora a maioria dos secretários tenha casa em Manaus, todos se mudaram para o “Conjunto”, apesar do acesso precário e dos 12 quilômetros de distância do centro da cidade. A secretária do Trabalho e Assistência Social não pensou duas vezes. Além de poder alugar sua casa e morar de graça – no “Conjunto dos Secretários” ela só paga despesas de manutenção e, assim mesmo, as contas de água e luz têm taxas reduzidas -, passou a ter à sua disposição mordomo, governanta e polícia de segurança pessoal.
E o descaso?
Os órgãos públicos, no entanto, não se limitam a cuidar do bem-estar dos superfuncionários apenas durante os seus dias de trabalho. É preciso pensar também nos dias de descanso. Como faz a Companhia Vale do Rio Doce, que construiu uma casa de veraneio para os seus diretores em Tubarão, no Espírito Santo. Construída em cima de uma pedra, de onde se pode ouvir o barulho do mar, ela vem sofrendo nos últimos tempos os efeitos do crescimento das usinas de pallets e das instalações portuárias.
O atual presidente da CVRD, desgostoso com a poluição sonora e a provocada pelo pó de minério, resolveu tomar providências. Comprou a mais bela praia de Vitória, a “Praia das Gaivotas”, que fica de frente para a “Praia Comprida”, na Ilha do Frade. Nela será construída a nova residência de verão para o presidente da companhia. Entre terreno e residência, o projeto está orçado em 12 milhões de cruzeiros.
Os privilégios de funcionários, diretores e presidentes de órgãos da administração indireta estão acima da imaginação – e de qualquer tipo de controle. É nessa faixa que se encontra a elite dos superfuncionários, civis ou militares, a começar pelos presidentes e diretores, passando por todos os escalões de assessores.
Além das casas luxuosamente mobiliadas pelas empresas nos bairros mais elegantes, carros e aviões oficiais à disposição, proliferam as mordomias, os cartões de crédito e as contas abertas em supermercados. Cada um pode gastar um teto mensal, em quaisquer circunstâncias, que abrangem até contas de bar e butiques, como foi recentemente denunciado com a publicação das contas de uma empresa estatal carioca.
Não há uma regulamentação própria para as mordomias – regalia a que, até meados da última década, só o presidente da República tinha direito. Ninguém sabe, no governo, afirmar com certeza o que regula a concessão de mordomia, quem tem dir<,ito a ela, se há limite para os gastos, como ela deve ser utilizada – e, nem mesmo, o que vem a ser exatamente mordomia.
Por uma antiga lei da década de 30, apenas o presidente da República podia dispor de mordomia. Atualmente, mordomia para os ministros de Estado é encarada como fato normal, com “jurisprudência firmada” sobre o assunto.
Há um decreto, entretanto, de janeiro do ano passado (DL 1.390, de 30 de janeiro de 75), que definiu “Residência Oficial e Funcional”. Diz o decreto, em seu artigo 34, que as residências do tipo “X’ ministeriais, exclusivas de ministros de Estado – terão despesas de manutenção e conservação a cargo do órgão ou entidade a que pertencem, respeitado o previsto no respectivo orçamento.
Foi nesse decreto que o ministro Golbery do Couto e Silva se baseou para expedir no final de maio uma circular, por ordem do presidente Ernesto Geisel, determinando providências dos ministros contra os abusos que estavam se verificando nos gastos de mordomia.
Nem mesmo esse decreto-lei, porém, trata especificamente da mordomia. Mas o governo está considerando “despesas de manutenção e conservação” como mordomia, para efeito legal. Uma vez firmada essa jurisprudência, a vantagem ficaria restrita aos ministros de Estado – o que, no entanto, não ocorre na realidade.
As vantagens quase ilimitadas de uma classe especial
Em Brasília, a capital dos superfuncionários, todos sabem dos abusos, mas ninguém tem como prová-Ias, mesmo porque ninguém quer deixar de usufruir das vantagens. Além disso, esses gastos constam geralmente no item despesas gerais na prestação de contas dos órgãos públicos, o que torna ainda mais difícil o seu controle.
Há, porém, exceções, como o governo do Distrito Federal, que no ano passado especificou todas as despesas de sua mordomia. Assim, o Tribunal de Contas do Distrito Federal ficou sabendo que, em curto período, a mordomia do governador Elmo Serejo Farias comprou 47 vidros de laquê, por Cr$ 2.309,90. A inspetora Elza da Silva Guimarães, do TCDF, achou também “estranhável” a quantidade de gêneros alimentícios adquiridos num só dia: 17 quilos de melão, 23 quilos de uva, 14 quilos de ameixa, 11,3 quilos de mamão, 21 caixas de pêssego e 16 dúzias de bananas.
Mais “estranhável” ainda, ela considerou a compra do dia 15 de maio de 74, quando foram adquiridos para a residência do governador Elmo Serejo Farias 6.825 pães franceses, 280 litros de leite e sete pacotes de pães de forma, todos de uma só firma.
Ao que se saiba, a única medida concreta adotada pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal, diante de tantas “estranhezas”, foi a abertura de um inquérito para apurar a responsabilidade do servidor que forneceu à imprensa os autos do processo de tomada de contas da mordomia do governador de Brasília – descuido que permitiu ao público ter uma idéia do consumo nas residências oficiais.
Além disso, o TCDF achou conveniente alertar o governador para “possíveis abusos que estariam sendo cometidos por funcionários encarregados das compras de mordomia’:
O mesmo destino parece reservado à comissão de inquérito instalada em Alagoas, no final do ano passado, para apurar as denúncias feitas por um deputado da oposição contra o ex-secretário da Fazenda, Mario Berard. Segundo o deputado José Costa, a Secretaria da Fazenda do governo Afranio Lages gastou mais de 600 mil cruzeiros apenas em patinhas de uçá e casquinhas de siri servidas durante as recepções oficiais.
O decreto-lei 1.390, em que o presidente Geisel se baseou para emitir a sua circular de advertência e que limita as mordomias aos ministros de Estado, disciplina também o uso das residências oficiais, estabelecendo quatro tipos de unidades: tipo “A”, para ministros de Estado; tipo “B”, para titulares dos dois mais altos níveis do funcionalismo (DAS 5 e 6), que é a oficial, servindo também para os que têm cargos de representação superior ou equivalente; tipo “C” (funcional superior), para titulares de cargos de direção superior (DAS 4) ou grau de representação equivalente; e tipo “D” (funcional), destinada aos demais funcionários ou empregados, segundo critério a ser estabelecido pelo GEMUD (Grupo Executivo da Mudança), hoje no DASP (Diretoria de Administração e Serviço Público).
Pelo decreto, as residências ”A” (ministerial), “B” (oficial) e “C” (funcional superior) serão entregues para ocupação com os móveis, utensílios, complementos e equipamentos que foram determinados em resolução do GEMUD.
O artigo 38 do decreto afirma que serão consideradas disponíveis, para efeito de redistribuição, as unidades residenciais atribuídas pelo GEMUD a órgãos ou entidades e que não forem distribuídas no prazo de 90 dias; as do tipo “D”, que permanecerem desocupadas por mais de 30 dias, contados da assinatura do termo de ocupação.
Contudo, é muito fácil para qualquer morador de Brasília encontrar apartamentos fechados por espaços de tempo muitas vezes superiores àqueles estabelecidos no decreto, como aconteceu com o apartamento do presidente do INCRA.
Quanto mais alto o cargo – e, portanto, o salário -, maiores são os benefícios e as isenções estabelecidas no decreto. Para os ocupantes das residências tipo “B’: por exemplo, geralmente secretários-gerais de ministérios ou presidentes de autarquias, o decreto prevê isenção de pagamentos como taxa de ocupação e demais despesas de manutenção (água, luz, telefone), até o limite mensal correspondente a dez vezes o salário mínimo no Distrito Federal, cerca de Cr$ 7.000,00.
Nas residências “C” e “D”, os ocupantes são responsáveis por todas as despesas de utilização, além do pagamento de taxa de ocupação, que é de 1 % do valor do imóvel. Estabelece também o decreto que é vedada a utilização das residências “1\’, “B” e “C’: “por quem não tem categoria funcional para ocupá-Ias” – o que, na realidade, não é obedecido.
Em muitos pontos, a legislação que regulamenta os usos e costumes dos superfuncionários é falha. Em outro, inexiste. E, quando a lei é específica, detalhada, completa, como nesse caso das residências oficiais ou no uso dos carros oficiais, ela é desrespeitada das mais diversas maneiras.
Os carros rodam
Por exemplo: após as reiteradas recomendações do presidente da República para que fosse diminuída a frota de veículos oficiais e o seu consumo de combustível, alguns ministros chegaram a determinar rigidez nesse controle – venderam alguns carros e disciplinaram seu uso.
O ministro da Justiça, Armando Falcão, foi um deles. Tirou o carro de representação individual dos assessores do seu gabinete, mantendo apenas um para o uso de todos eles, em horário de serviço. Mas manteve os quatro carros da sua segurança, que acompanham o LTD ministerial.
Outro que diz ter “dado o exemplo” foi o diretor-geral do DASP, Darcy Siqueira: reduziu sua frota de 43 veículos de representação individual (os demais não contam no caso) para apenas três. O que Darcy Siqueira não conta é qual o destino dado aos automóveis que não são mais utilizados. Segundo um jornalista das suas relações, no entanto, 20 desses carros foram transferidos para o DOI-CODI do Rio de Janeiro.
Assim, a redução do consumo de combustível, que o governo quer, não se processa, pois as despesas apenas estão sendo transferidas de um órgão para outro. O próprio coronel Darcy Siqueira informa que o DASP fez um levantamento dos carros oficiais circulando atualmente apenas no eixo Rio-Brasília: cerca de seis mil veículos. Mas não definiu se são só os chapas-brancas*, ou também os “chapas-frias”, negras, verde-amarelas etc.
A última sofisticação em termos de carro oficial para uso dos funcionários também é difícil de ser provada, até mesmo pelo Tribunal de Contas da União, segundo denúncia de um alto funcionário do TCU, que, como todos, pede para não ser citado: alguns Ministérios, como o da Fazenda, estão recorrendo a autolocadoras, utilizando os serviços de carros de chapa-amarela, comum, com motorista, tudo por conta do erário.
O Tribunal de Contas da União já recebeu, nas contas dos Ministérios, despesas referentes a estes gastos específicos. Impugnou-os, pediu explicações e, até hoje, não obteve resposta.
Mas em Brasília alguns ministérios chegaram a cumprir as ordens de Geisel, o mesmo não se pode dizer do que ocorre a distâncias maiores do Palácio do Planalto. No Pará, por exemplo, depois de instituir todas as honras palacianas, como formação de guarda e toque de corneta à sua chegada, o governador Aloysio Chaves resolveu comprar o mais caro automóvel fabricado no Brasil, o Ford-Landau (ao preço de Cr$ 140.000,00 posto em Belém), recordista no consumo de combustível.
Os gostos dos governadores, no entanto, nunca são isolados. Imediatamente, providenciaram também os seus Ford-Landau o presidente da Assembléia Legislativa, o presidente do Tribunal de Justiça e até o presidente do Tribunal de Contas do Estado. Os secretários de Estado e dirigentes de empresas de economia mista contentaram-se em renovar suas frotas com Ford-Maverick, mais barato que o Landau, mas, como este, nada econômico em termos de consumo de gasolina.
Os carros oficiais servem para levar os filhos dos superfuncionários ao colégio, as madames às butiques e cabeleireiros, os empregados e os funcionários propriamente ditos aos restaurantes. Os automóveis de chapa-amarela que não são particulares podem ser vistos às centenas circulando em Brasília ou nas capitais estaduais. Servem, à custa das empresas, a executivos estatais e suas famílias. Recentemente, um banco oficial renovou sua frota, adquirindo possantes Alfa-Romeo, embora os Dodge Dart de luxo ainda sejam os preferidos.
De certa maneira, contudo, o carro oficial foi aos poucos deixando de ser um símbolo do “status” dos superfuncionários. Hoje, qualquer funcionário subalterno pode ter um à disposição e essa facilidade tirou toda a sua imponência.
Voar, voar
O “brut-de-brut”, hoje, são aviões e helicópteros oficiais. A nova moda começou pelos Ministérios e, a exemplo do que ocorreu com casas, carros e mordomias, estendeu-se rapidamente às empresas estatais e de economia mista, autarquias e fundações, governos estaduais e municipais.
A proliferação do transporte aéreo oficial e seu uso indiscriminado chegou a tal ponto que, em maio, o Palácio do Planalto resolveu enviar uma carta circular aos ministros, informando-os que os jatinhos HS da FAB só deveriam ser usados em “caráter excepcional”.
Quando essa circular foi enviada, contudo, os ministros eram responsáveis por uma ínfima parcela do consumo de combustível de aviação pago pelo governo.
Dos bancos oficiais, ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, à Companhia de Eletricidade do Ceará – COELCE, hoje é raro o órgão público que não dispõe de jatinhos executivos, bimotores “King” e “Queen-Air” e até mesmo os nacionais “Bandeirante”. Se eles existem – e não consta que ninguém os tenha vendido -, cabe a pergunta: quem controla seu uso?
Na sede do Banco Nacional da Habitação, no Rio, por exemplo, não é segredo para nenhum funcionário que o jatinho da presidência decola religiosamente todas as sextas-feiras à tarde para Curitiba, só retomando na segunda-feira de manhã.
Para os que ainda não tiveram a graça de entrar no círculo dos superfuncionários que têm aviões à disposição, resta sempre o consolo das passagens pagas pelos órgãos públicos em aviões de carreira.
Corno Brasília não oferece muitas opções de lazer, os superfuncionários aliviam a solidão do Planalto Central nas viagens de fins de semana aos seus Estados de origem; ou ao Rio – a cidade mais procurada.
O movimento no aeroporto, às sextas-feiras, chega a provocar congestionamentos e brigas nos guichês – afinal, quase todos são autoridades e se sentem no direito de garantir urna vaga. De acordo com levantamentos feitos pelas empresas aéreas, em Brasília, 80% dos passageiros são funcionários públicos, a maioria absoluta com passagens pagas pelos órgãos oficiais em que trabalham.
Segundo um alto funcionário da Câmara Federal, há dois Ministérios que gastam mais em passagens aéreas por mês do que todo o Congresso Nacional. Note-se que o Congresso Nacional tem mais de 400 representantes que recebem, cada um, quatro passagens por mês de ida e volta a seus Estados de origem e uma ao Rio.
Diante de todo esse aparato de privilégios, vantagens e regalias, os salários propriamente ditos percebidos pelos superfuncionáriose que tanta polêmica vêm causando no Congresso e na imprensa tornam-se meros detalhes, uma discussão menor. De fato, os salários talvez constituam a menor parcela do que custa ao erário público a manutenção dos superfuncionários da administração direta e indireta do governo.
Como um superfuncionário, normalmente, não recebe menos de Cr$ 60.000,00 por mês, pode-se dizer que, somando suas vantagens indiretas, ele chega, no mínimo, a dobrar seus vencimentos. São os seguintes os cálculos mais baixos: manutenção e despesas de um Ford Galaxie: Cr$ 10.000,00; água, luz e telefone: Cr$ 7.000,00; aluguel de uma casa no Lago: Cr$ 15.000,00; conservação da piscina: Cr$ 2.000,00; criadagem: Cr$ 3.000,00; além da dispensa de pagamento de imposto predial, condomínio, vigilância etc. Isso daria Cr$ 100.000,00 mensais, mas há ainda outras vantagens. Alguns órgãos públicos instituíram um salário adicional disfarçado, que é o cartão de crédito dado aos diretores; além das contas abertas em supermercados.
No final, todas essas vantagens se traduzem em dinheiro e todos os superfuncionários ganham muito mais que o presidente da República, viajam freqüentemente para o Exterior, divertem-se, fazem política e dão presentes a expensas do erário ou dos acionistas das empresas – e o governo é sempre o maior acionista.
Mas, mesmo levando em conta apenas os salários propriamente ditos, o superfuncionário brasileiro pode ser incluído hoje entre os mais bem pagos de todo o mundo.
Isso pode ser demonstrado quando se comparam os salários do presidente do Banco Mundial, Robert McNamara – um dos superfuncionários mais bem pagos dos Estados Unidos – com os salários do presidente do Banco do Brasil, Angelo Calmon de Sá – que, por suas próprias declarações ao “Estado”, está longe de ser o mais bem pago superfuncionário brasileiro. Em carta enviada ao “Estado” e publicada no último dia 6 de junho, Angelo Calmon de Sá desmente que seus vencimentos estejam em torno de Cr$ 300.000,00, como chegou a ser divulgado. Segundo ele, “os ganhos mensais do presidente do Banco do Brasil, incluindo a participação nos lucros, se situam em torno de Cr$ 85.000,00”. Admitindo-se a informação oficial, Angelo Calmon de Sá teria um salário anual de Cr$ 1.020.000,00.
A revista norte-americana “U.S. News § World Report” de abril último, por sua vez, informa que o superfuncionário Robert McNamara, ex-secretário de Estado, percebe um salário anual de US$ 116.000 cerca de Cr$ 1,2 milhão.
Entretanto, se salários pagos a executivos fossem o principal critério para se estabelecer o nível de desenvolvimento econômico de um país, o Brasil teria suplantado os Estados Unidos, pois, segundo uma pesquisa realizada recentemente pela firma norte-americana de consultaria Towers, Perrin, Forst e Crosby, “o Brasil é o único país do mundo onde o salário médio nos mais altos escalões das empresas iguala ou supera o nível dos Estados Unidos”.
E os salários?
É certo que a vantagem relativa usufruída pelos superfuncionários brasileiros frente a seus congêneres do mundo inteiro não se mantém no caso dos salários mínimos. Com efeito, enquanto os altos escalões brasileiros recebem 5% a mais de salário médio do que seus colegas nos Estados Unidos, os operários brasileiros têm um salário mínimo dez vezes menor que o salário mínimo norte-americano (560 dólares mensais, isto é, aproximadamente Cr$ 5.600,00).
A pesquisa da Towers, Perrin, Forst e Crosby fixou-se basicamente na comparação de salários pagos nas empresas privadas brasileiras e norte-americanas. Mas a grande peculiaridade brasileira não está só no nível dos salários pagos a executivos de empresas privadas. Há indicações de que o Brasil tem níveis recordes de salários para executivos de empresas estatais. Assim, diferentemente da maior parte dos países, os salários pagos a executivos de empresas estatais brasileiras rivalizam, quando não superam, o dos executivos de empresas privadas.
Se os salários do presidente da República e dos ministros de Estado são inferiores aos salários pagos para os altos escalões de empresas privadas, o mesmo não acontece, atualmente, com os rendimentos recebidos pelos executivos de empresas estatais.
O melhor e mais evidente indício da desproporção que atingiram ultimamente esses níveis salariais é o mistério que cerca qualquer informação sobre vencimentos e vantagens dos funcionários do primeiro escalão do governo.
Isso pode ser caracterizado pela atitude do presidente do Banco Nacional da Habitação. Indagado sobre os salários da diretoria do BNH, ele disse que uma decisão do Conselho Monetário Nacional nivelou o padrão do seu banco ao do Banco do Brasil e explicou:
“Quando a Assembléia Geral do Banco do Brasil estipula o salário da sua diretoria, o BNH acompanha.” “Então – insistiu o repórter – quais são esses níveis atualmente?”
“Não sei – respondeu Schullman. – Eles mandam as informações e nÓs cumprimos.”
Na mesma semana, o presidente do Banco do Brasil acabaria dando a resposta, na sua carta-desmentido enviada ao “Estado”, tirando certamente as eventuais dúvidas do presidente do BNH sobre os seus próprios salários.
O que o BNH informa é que os vencimentos de seus diretores são regulados por uma famosa e misteriosa RD (Resolução de Diretoria), que leva o número 65/72. Certa vez, um funcionário do BNH precisou consultar esse documento, que também fixa padrões salariais para os demais empregados, a fim de dirimir uma dúvida pessoal. Mas não obteve muito êxito. Depois de inúmeras e demoradas gestões junto ao setor competente, forneceram-lhe apenas a parte da RD 65/72 que supostamente lhe interessaria.
Nem o próprio governo tem condições de responder a essa pergunta que vem sendo feita ultimamente com bastante insistência, em especial nos meios parlamentares: quanto ganha exatamente um executivo das empresas públicas?
Recentemente, no Senado, foram feitas denúncias de que o presidente da Petrobrás ganha mais de Cr$ 200.000,00 por mês e que o Banco do Brasil distribuiu, s6 no ano passado, cerca de Cr$ 7.000.000,00 aos seus diretores, sob a forma de participação nos lucros.
Os denunciantes foram os senadores Leite Chaves (MDB-PR) e Luís Cavalcanti (Arena-AL). Em vista disso, líderes do partido do governo solicitaram a inúmeras empresas os vencimentos dos diretores. As poucas que atenderam ao pedido informaram apenas o salário propriamente dito, sem enumerar as vantagens adicionais.
A própria tarefa do partido do governo de defender esses superfuncionários é difícil, pois as empresas não informam o valor da ajuda de custo, das representações, diárias de viagem, mordomia, consumo de combustível, aluguéis de casas etc.
Em seus balanços, por tradição, as empresas não oferecem ao analista condições nem mesmo de saber quanto ganham o presidente e os diretores. São registrados, apenas, os honorários da diretoria, lançados no total de despesas administrativas ou outras classificações.
Poucos exibem a participação nos lucros ou as gratificações.
O Banco do Brasil, no seu último balanço, não aponta os honorários dos diretores, mas demonstra q!le só no segundo semestre do ano passado eles receberam uma participação nos lucros no valor de Cr$ 3.600.000,00, o que, com o resultado do semestre anterior, chega a quase Cr$ 7.000.000,00.
No ano, isso significa Cr$ 422.000,00 para cada um dos 16 diretores, além das demais vantagens.
De qualquer forma, apesar de todo o sigilo erguido em torno dos salários dos superfuncionários, algumas informações começaram a vazar, pe:-mitindo que se monte um quadro o mais aproximado possível da realidade.
Alguns, como os dirigentes da Companhia de Eletricidade do Ceará – que atende ‘pela sigla COELCE -, chegaram a alegar “segredos de Estado” para sonegar as informações pedidas pelo repórter, sustentando que “sobre esse assunto, o presidente e os diretores somente devem satisfações ao Conselho de Contas, pois é um assunto estritamente confidencial, uma vez que não interessa ao grande público. Mais os lucros
Na Companhia Siderúrgica Nacional, no Rio, um dos técnicos ligados à sua direção não impôs qualquer obstáculo à obtenção dessas, informações, segundo ele “muito proveitosas, para a empresa mostrar que seus diretores não recebem salários astronômicos, mas ao nível de mercado”.
Os atuais vencimentos da diretoria foram fixados na última Assembléia Geral e publicados no Diário Oficial da União de 26 de maio de 76. Variam percentualmente sobre o salário máximo dos empregados, que é de Cr$ 25.730,00, correspondente à função de superintendente.
O presidente da CSN ganha 35% acima desse limite (Cr$ 34.730,00), o vice-presidente executivo mais 30% (Cr$ 33.449,00) e os diretores mais 28% (Cr$ 32.934,40).
A Companhia Vale do Rio Doce também considerou “politicamente interessante” não esconder os níveis salariais de seus dirigentes. Eles ganham mensalmente 10% acima do teto de Cr$ 37.000,00 do quadro geral, equivalente ao salário de superintendente, e o presidente mais 15% (Cr$ 42.550,00).
No final do ano, a Assembléia Geral fixa a gratificação da diretoria, que no ano passado foi de Cr$ 3.600.000,00, segundo uma versão, ou de Cr$ 1.500.000,00, segundo outra. De qualquer forma, os especialistas em balanços informam que os nove diretores da Vale do Rio Doce tiveram uma participação nos lucros maior do que a que foi paga pela multinacional Anderson Clayton aos seus seis diretores.
O presidente da Eletrobrás, o médico Antonio Carlos Magalhães, garante que cortou alguns favores atribuídos à diretoria, depois que algumas denúncias chegaram aos jornais no início do ano. Proibiu, por exemplo, que um dos diretores usasse o avião da empresa para constantes viagens ao seu Estado de origem para participar de reuniões políticas.
Mas os diretores da Eletrobrás continuam recebendo 17 salários por ano, além das férias e demais vantagens. Os dados oficiais da Eletrobrás mostram que os seis diretores receberam honorários equivalentes a Cr$ 2.800.000,00 em 75, além da participação nos lucros da empresa.
Na Companhia Docas de Santos, os seis diretores ganharam Cr$ 2.800.000,00 em honorários, mais Cr$ 2.400.000,00 em participação nos lucros, o que corresponde a um salário anual de Cr$ 800.000,00.
A Petroquímica União, por sua vez, quase dobrou os honorários de seus dirigentes: pagou-lhes Cr$ 2.090.000,00 em 75, contra Cr$ 1.100.000,00 no ano anterior, sem contar outras participações.
Mas os bons salários e outras vantagens não são encontráveis apenas na esfera federal. O Banco do Nordeste, por exemplo, nada fica a dever às melhores fontes pagadoras estatais das regiões mais desenvolvidas do Centro-Sul do país.
Tão bem remunerados são seus diretores que, até há bem pouco tempo, os recursos destinados à sua participação nos lucros e às gratificações de funcionários eram superiores aos reservados para o pagamento de dividendos aos acionistas. No ano passado, o Banco do Nordeste deu aos seus cinco diretores, além dos salários, uma participação nos lucros que atingiu a Cr$ 2.075.000,00.
Sustentando que o Banco do Nordeste tem “uma longa tradição de seriedade profissional, eficiência operacional e dedicação à causa pública”, seu atual presidente fez questão de esclarecer: “Ao assumir o cargo, tive o cuidado de implantar uma filosofia de rigorosa austeridade administrativa, eliminando gastos supérfluos e controlando os custos e dispêndios em imobilizações.”
Na Bahia, segundo a relação oficial, o superfuncionário mais bem pago é o presidente da Empresa Baiana de Águas e Saneamento, que recebe 26 salários mínimos por mês, mais 30% de verba de representação, o que daria um total aproximado de Cr$ 25.000,00.
Mas o diretor-presidente da recém-criada companhia de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu queixa-se de que está tendo um prejuízo mensal de Cr$ 30.000,00, por ter trocado o cargo de superintendente do Banco do Estado da Bahia pela presidência da CDVP. Como informou que recebe atualmente um salário mensal de Cr$ 25.000,00, é fácil deduzir que os diretores do Banco do Estado da Bahia devem estar ganhando Cr$ 55.000,00 por mês.
Outra particularidade da Bahia – que já tem um total de 21 empresas estatais – é a situação do presidente da Companhia de Armazéns e Silos (CASEB). Embora o seu salário seja o menor de todos os pagos pelas empresas estatais – Cr$ 10.000,00 -, ele tem direito a 5% de participação nos lucros da empresa, que no ano passado foram de 4 milhões de cruzeiros, segundo a Secretaria da Agricultura da Bahia.
Acumulados
Por causa dessas peculiaridades (são comuns os casos de superfundonários que têm participação nos lucros ou recebem entre 14 e 16 salários por ano, como os diretores da Companhia Estadual de Silos e Armazéns do Rio Grande do Sul, ou os diretores da Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia), os superfuncionários da administração direta talvez não gostem de fazer comparações dos seus salários com os que são pagos pelas empresas estatais.
Entretanto, é fato notório a crescente disparidade entre os vencimentos dos servidores estatutários e aqueles regidos pela CLT e, até mesmo, entre estes e secretários-ministros de Estado.
As empresas públicas só contratam pela CLT. O que permite a um economista de uma empresa dessas ganhar até três vezes mais do que o economista de um Ministério, estatutário, mesmo que desempenhe o mesmo trabalho. Para isso, basta comparar os salários pagos pelas empresas estatais com os mais altos salários pagos ao funcionalismo público estatutário (da administração direta).
Na administração direta, o nível mais alto é o DAS (Direção e Assessoramento Superior – 6: Cr$ 20.000.00, mais 60% de verba de representação (secretários-gerais dos Ministérios): DAS-5: Cr$ 18.000.00, mais 55% de verba de representação (em geral, presidentes de autarquias); DAS-4, Cr$ 17.000,00, mais 50% de verba de representação (diretores de departamentos de Ministérios); DAS-3: Cr$ 14.500,00, mais 45% de verba de representação (chefes de gabinete e consultores jurídicos); DAS-2: Cr$ 13.000,00, mais 35% de verba de representação (assessores de Ministérios) e DAS-I: Cr$ 11.000,00, mais 20% de verba de representação (assessores das secretarias gerais).
O decreto dos cargos DAS estabelece, detalhadamente, quem tem direito aos seis níveis, especificando órgão por órgão, numa extensa lista. Essa referência é apenas para os funcionários ministeriais. Um ministro de Estado ganha atualmente Cr$ 22.000,00, mais 70% de verba de representação, o mesmo a que têm direito o Consultor-Geral da República e o diretor-geral do Departamento de Administração e Serviço Público (DASP).
Só mais recentemente, por um outro decreto (o de número 75.627, de 18 de abril de 75), foi criado o nível FAS (Função de Assessoramento Superior), que dispõe sobre a contratação para o desempenho das atividades de assessoramento aos ministros de Estado.
Esses funcionários servem para “atender ao desenvolvimento dos trabalhos caracterizados pelo alto nível de especificidade, complexibilidade e responsabilidade’: Só os ministros de Estado e dirigentes de órgãos integrantes da Presidência da República poderão dispor de funções de assessoramento no grau superior.
É exigida formação completa de nível superior, e o salário vai de Cr$ 8.000,00 a Cr$ 36.000,00, a critério de cada ministro. Esse decreto acabou gerando um outro fator de disparidade, com funcionários do mesmo órgão, exercendo a mesma função, percebendo salários completamente diferentes. Tal categoria apenas não prevê o acúmulo de salários: o funcionário FAS não pode ser da administração direta.
Na parafernálía da estrutura salarial dos órgãos do governo, do que é permitido e do que não é, há uma lei bastante curiosa. Essa lei permite uma opção para os funcionários que têm cargos DAS: quando o seu salário no órgão de origem for superior ao DAS a que teria direito, ele continua recebendo o salário maior, do órgão de origem – e, além dele, mais 20% do DAS que lhe seria destinado.
É o caso do secretário de Imprensa da Presidência da República, Humberto Esmeralda, e do diretor-geral do DASP, coronel Darcy Siqueira, que continuam ganhando seus salários de funcionários da Petrobrás.
Há um parecer do consultor-geral do DASP, Clenício da Silva Duarte, segundo o qual, determinados funcionários podem acumular vários salários, ou seja: recebem a aposentadoria de militar, ex-ministros de tribunais, funcionários de empresas estatais e mais o salário correspondente à sua função atual. Enquadram-se nesse parecer o ministro-chefe da Casa Civil;general Golbery do Couto e Silva, e todo o pessoal da Petrobrás que acompanhou o presidente Geisel para o Palácio do Planalto, como Humberto Esmeraldo. Esse parecer foi emitido nos primeiros dias do atual governo.
Fonte: MOLICA, Fernando. As dez reportagens que abalaram a ditadura. ed. RECORD, 2005.
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